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Gostar de Si

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Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós!

Gostar de Si



O Sr. Luís era muito estimado na terra, fizera do negócio de gado a sua vida e o café, que tinha sido taberna e de que era dono, ajudara. Ajudara a estabelecer contactos, a concretizar negócios, a compor o final do mês até ser como agora a principal fonte de rendimento. O negócio do gado acabara, acabara a pouco e pouco, e Luís não suportou a ideia de limitar a sua atividade a taberneiro, tanto economicamente, mas sobretudo pela perda de prestígio. Ele considerava-se acima dos outros, tinha expediente, sabia negociar, passava a maior parte do tempo fora da terra, e por isso o alcunhavam de Já Foste, o que não diminuía a admiração dos conterrâneos. Quando precisavam de um conselho, de um empréstimo ou de outra ajuda, recorriam a ele. Até o Paxá, alcunha do primogénito da família Ferro, os mais ricos da terra, que viviam em Lisboa, fazia questão de mandar chamar Luís para o aconselhar e privilegiava-o com convites lá para casa. Passar a taberneiro era tirarem-lhe o tapete do chão, apesar de o Já Foste ficar assim mais próximo de todos e com uma vida mais sossegada, que a idade já pedia. A alcunha deixou de se aplicar, mas manteve-se e até passou a ser mais usada, com o convívio mais frequente com os demais. Tal intimidade em vez de lhe ser agradável incomodava-o, e desvalorizava-se por agora se achar como os outros. Ninguém percebia isto e Luís a ninguém confessava o que lhe ia na alma. Mantinha a mesma altivez, quase arrogância, mas não permitia que as amizades se estreitassem. Era para ele sinal de perda do seu estatuto. Para mais tinha a mulher sempre a procurá-lo a toda a hora, o que evitara na sua vida ativa. Estava acostumado a dar-lhe ordens, a exigir serviços, e atualmente era ela que exclamava “Luís vem jantar”, “Luís vai tomar os comprimidos” e pior que tudo “Luís levanta-te, deste em mandriar”. Não suportava ter de repartir poderes naquilo que era até há pouco o território dela, o mini-mercado e o café. Custava-lhe por isso levantar-se para ir atender clientes para o café, que também lhe davam ordens. Tinha o sentimento de ser criado de todos, até a nora Ana não se coibia de lhe fazer reparos. Sentia-se ferido e parecia que enquanto os outros ganhavam folgo com a sua desgraça, ele perdia interesse pela vida, mesmo desejo de viver, e a sua altivez curvava-se a uma velhice súbita e prematura. Nunca se viu com tal futuro, a sua estima nascia do apreço dos outros, da sua vaidade, não vinha de si. Afinal este homem nunca conseguira gostar de si por aquilo que era. Gostava de si por conseguir levar a melhor nos negócios, por ter dinheiro, e quando emprestava tinha o secreto prazer de confrontar o outro com a sua carência, não a alegria de poder ajudar. Como é que podia gostar de si se nem sabia quem era, e como é que podia gostar dos outros se se sentia humilhado por eles. Não conseguia gostar de ninguém. Cresceu nele um amargo constante, a intolerância, a revolta, o desejo de desaparecer, de morrer. Cada vez se levantava mais tarde para não ter de ir para o café, apesar da mulher o instigar a tal, o que só aumentava a vontade de a contrariar. Os longos períodos de cama e de sofá foram-lhe diminuindo a mobilidade, desculpa maior para não ir para o café. Isolava-se e perdia-se sozinho em angústias e recriminações, num sofrimento que ninguém imaginava, que com o tempo se foi anestesiando num vazio e indiferença para o que o rodeava. Todos comentavam “quem viu este homem e quem o vê agora!”, mas ninguém sabia a doença e alvitravam “é a velhice, dá cabo de uma pessoa!”. A mulher levou-o ao médico que lhe pediu análises, mas o Sr. Luís tinha bons resultados. Até o coração estava bem, apesar de se queixar de palpitações e apertos. Emagrecia e não tinha apetite. Marcaram uma consulta em Évora, a capital do distrito. Houve quem dissesse que ele tinha Alzheimer porque fazia confusões das poucas vezes que falava. Quase não andava.


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Porquê o título “Gostar de si” numa história que mostra um homem que, por várias circunstâncias de vida, se foi desinteressando e desligando de viver. Luís fez todo um percurso de vida em que vivia senhor de si, admirado e respeitado pelos outros. Isso enchia-o, mas era isso capacidade de gostar de si? O gosto que tinha por si próprio vinha da admiração dos outros e não de si. O que era um homem aparentemente sólido veio a revelar-se como frágil e dependente da imagem que os outros tinham dele. Quantas pessoas conhecemos assim, que a partir do momento em que perdem o seu estatuto profissional e/ou social não suportam mais a vida e deprimem-se. À depressão no envelhecer é dada pouca atenção na sua compreensão, atribuindo-se causas biológicas, que se pensa se resolvem simplesmente com antidepressivos, mas que têm raízes mais profundas. O resolvermos problemas nossos ao longo da vida, o sermos capazes de nos conhecer melhor, de percebermos o que somos e como somos na relação com os outros, ajuda a sermos capazes de termos mais consciência de nós próprios. E não é a forma como nos construímos conscientemente que permite conquistar consistência pessoal e auto-estima. Luís precisava dos outros para gostar de ele mesmo, mas quando se esvaneceu a imagem que ele precisava que os outros tivessem dele, deixou de gostar de si, ou provavelmente nunca chegou a gostar realmente de si. A isto chama-se personalidade narcísica, como Narciso, que no mito não gostava verdadeiramente dele, mas da imagem dele que lhe era dada pelo reflexo na água. No próprio mito Narciso morreria se alguma vez olhasse para a sua imagem. Luís era intolerante à forma como sentia que estava a ser olhado pelos outros. Não percebia que os outros o estimavam e que provavelmente até apreciavam a proximidade com ele. Luís era incapaz de aceitar essa proximidade, de gostar dos outros como pessoas, da mesma forma que não gostava suficientemente dele.

Por esta história percebemos que o que somos como pessoas pode ser decisivo na forma como corre a nossa vida, até na doença. E o que nos parece irrelevante num momento da vida pode projetar-se no nosso futuro de forma determinante.


Conclusão

É importante conhecermo-nos para gostarmos verdadeiramente de nós. Se não gostamos de nós quem é que gosta?