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O Lugar

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Histórias da Longevidade - Esquecemo-nos de nós!

O Lugar



Aquele pequeno comércio era a alma daquela terra, conjunto de casas à beira da estrada, com uma praça recuada, a igreja branca e simples, a casa que fora do Sr. Padre e que agora servia a paróquia, e passada uma esquina branca estava o café, que era tudo. Ou este tudo também tinha café, naquilo que já tinha sido chamado de taberna. Uma taberna precisa de taberneiro, ora quem tomava conta daquilo eram duas mulheres, assim fez-se café, com cadeiras em vez de bancos, mesas pequenas em vez de mesa corrida e balcão inox em vez do tampo de pedra cheio de segredos e histórias. A porta era coberta por um toldo que anunciava a marca do café. Ao lado havia outra porta que dava acesso à mercearia, que por arrumada em armários com prateleiras se chamava de mini-mercado. Tinha dois balcões em aço inoxidável, um para carnes e enchidos, outro maior tinha queijos, manteigas, leites e afins, ovos, pão, bolos e bolachas. Entre aquelas duas portas tudo da terra se sabia. Da primavera ao outono os visitantes davam mais movimento, e quando um estranho entrava as conversas paravam, para recomeçarem de forma desinteressada, a fingir que não ligavam nenhuma àquela criatura desconhecida, sobre quem havia pouco a dizer. O lugar tinha fama por vender o melhor pão da região, bem como bons enchidos. Quem tomava conta do comércio era Joaquina, mulher que apesar de carregar 73 anos de provações e sem ilusões na vida, se mostrava simpática e faladora, pronta a opinar sobre tudo o que os seus ouvidos alcançavam. Os seus muito ativos aparelhos fonatório e auditivo assentavam num corpo redondo, mas bastante enérgico e ágil para a idade. Como toda a mulher, desempenhava várias tarefas simultaneamente e com a destreza de um malabarista. Cortava e pesava fiambre, indicava o preço do queijo enquanto ouvia e comentava a má sorte da vizinha Adelaide que era desprezada pela filha, a Fitinhas. Quando acalmava o movimento e o lugar ficava vazio, Joaquina suspirava desamparada por sentir o vazio de não ter nada para fazer e atravessava a porta que ligava ao café onde estava Ana, sua nora, que tirava cafés com e sem cheirinho, vendia raspadinhas ou copos aos clientes que se instalavam para comentar e largar para o ar umas larachas. As duas mulheres com agilidade técnica de profissionais cúmplices trocavam as informações da terra e planeavam as refeições e os afazeres. Joaquina, se não chegava ninguém ao mini-mercado subia a casa, na porta ao lado, para olhar pelo marido que tinha Alzheimer. Era o que lhe diziam os médicos e ela estava certa disso. O Sr. Luís deixara de falar e mal se mexia, não colaborava com a mulher, tinha perdido o apetite e às vezes não comia nada ou quase nada. A dona Joaquina cuidava do marido logo de manhã, antes de abrir o mini-mercado, e dava uns saltos a casa durante o dia, apesar de ter o apoio pontual da sua nora para os cuidados de higiene do Sr. Luís. O trabalho era a sua salvação, não suportava estar muito tempo diante do marido no estado em que este estava. Na loja atendia, conversava, arrumava, fazia contas, anotava o que precisava de comprar e o que lhe deviam. Sabia tudo da terra. Rui, filho único do casal, era contabilista e bombeiro, e passava os dias todos no escritório ou no quartel, que ficavam numa das extremidades da terra, longe da mulher e da mãe, para não ter de as ouvir, mas longe também do pai, para não lhe pedirem nem auxílio nem favores.


breves considerações


O lugar remete-nos para a importância de uma vida inclusiva tanto das pessoas que sofrem de uma doença, como dos que os apoiam. A urbe vai-se modificando e exigindo a adaptação dos que nela vivem, tanto nas grandes cidades como nos pequenos centros urbanos. As mudanças não têm evoluído para a participação de todos e o isolamento social é uma das características mais nocivas para o bem estar tanto das pessoas como do grupo urbano. O desaparecimento das tabernas, que deu lugar aos cafés, permitiu que a mulher e as várias gerações se cruzassem num lugar que era território dos homens adultos. Da mesma forma que houve uma evolução na inclusão do género, também houve a nível de gerações, o que permitiu um maior contacto entre as diversas fachas etárias, com o que isso tem de positivo, mas insuficiente. Nota-se nesta história quanto era importante o trabalho para Joaquina, pois aliviava-a do peso de cuidar do marido, e era a sua forma de estar ativa e incluída socialmente. Mas, quem tem doenças, sobretudo nos de mais idade, vê-se excluído pelos outros e tem pudor em aparecer. A exclusão social é um dos maiores males para a condição humana, mesmo que ligeira e discreta. É a desvalorização da pessoa perante os outros e para si própria. O confronto e aceitação entre as várias gerações, géneros, estados de saúde física e mental, e todas as diferenças que caracterizam a riqueza da espécie humana é condição essencial para o bem estar social, mas também pessoal. O Sr. Luís se tivesse mantido uma vida de maior participação social, seguramente estaria melhor de saúde e com capacidades mantidas, como veremos na continuação desta história.

Por isso é que se luta cada vez mais pela inclusão das pessoas, não só os de mais idade, capacitando-os a desempenharem papéis sociais ativos, como os que têm doenças degenerativas como a Doença de Alzheimer. Não há nada mais estimulante, física e mentalmente, que poder viver a vida em todas as suas dimensões. Porque é que perdemos o sentido de família e de tribo para um Mundo de grupos que excluem os que não lhe pertencem, mesmo que sejam seus iguais e até família. Aproveitar as capacidades de cada um valoriza a pessoa e permite que ela contribua para o bem comum. A isto chama-se Ecologia Social.


Conclusão

Somos capazes de viver uns com os outros e aceitarmos as diferenças até na doença?